
É uma prática bastante comum nas empresas brasileiras a ocorrência de operações de empréstimo (adiantamento ou conta corrente) entre estas e seus sócios, administradores ou pessoas a estes ligadas, sem que tais operações encontrem-se amparadas e caracterizadas por contrato de mútuo, para resguardo da pessoa tomadora frente a eventual questionamento, tanto da Receita Federal, quanto de credores da sociedade, tais como fornecedores, Bancos ou mesmo funcionários e colaboradores.
Nesta primeira parte examinaremos a tipificação da referida prática à luz da legislação de regência enquanto, na segunda parte (a ser publicada no próximo mês) focaremos na incidência tributária e nas multas isoladas atribuíveis pelo fisco federal a estas operações.
I - Da Desconsideração da Personalidade Jurídica
Partindo da hipótese, que normalmente ocorre, em que os débitos destes empréstimos são representados apenas por mero registro contábil em conta corrente, em que o simples fato do registro de seu valor na declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física não elide a infringência ao artigo 50 e seus parágrafos do Novo Código Civil Brasileiro.
Como abaixo se poderá compreender, pela circunstância de se tratar, tanto de desvio de finalidade da pessoa jurídica, quanto de confusão patrimonial entre esta e o tomador dos recursos, como previsto no “caput” do referido artigo 50 do Código Civil, também em seus § 2º inciso II e § 3º . Trata-se, aqui, da regulamentação brasileira do que se convencionou denominar “desregard doctrine”, ou seja, a desconsideração da pessoa jurídica e de seus efeitos danosos, pois uma vez decretada, as garantias para as obrigações da sociedade passam a incluir os bens particulares de administradores e sócios que dela se beneficiaram direta ou indiretamente.
Vejamos.
Íntegra do Art. 50 do Novo Código Civil
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II – Da Tipificação como Distribuição Disfarçada de Lucros
Para a Receita Federal, operações de empréstimos a pessoas ligadas, apenas registradas informalmente em conta corrente, pela falta de uma correta formalização, serão, certamente, tipificados como Distribuição Disfarçada de Lucros, em atenção a legislação vigente.
A distribuição disfarçada de lucros é disciplinada pelo Decreto-Lei nº1.598/77 artigo 60, e no Decreto nº 9.580/2018 (Novo RIR) artigo 528, sendo presumida nas situações em que a pessoa jurídica: a) aliena, por valor notoriamente inferior ao de mercado, bem do seu ativo a pessoa ligada;
b) adquire, por valor notoriamente superior ao de mercado, bem de pessoa ligada;
c) perde, em decorrência do não exercício de direito à aquisição de bem e em benefício de pessoa ligada, sinal, depósito em garantia ou importância paga para obter opção de aquisição;
d) transfere a pessoa ligada, sem pagamento ou por valor inferior ao de mercado, direito de preferência à subscrição de valores mobiliários de emissão de companhia;
e) empresta dinheiro a pessoa ligada se, na data do empréstimo, possui lucros acumulados ou reservas de lucros;
f) paga a pessoa ligada aluguéis, royalties ou assistência técnica em montante que excede notoriamente do valor de mercado; e
g) realiza com pessoa ligada qualquer outro negócio em condições de favorecimento, assim entendidas condições mais vantajosas para a pessoa ligada do que as que prevaleçam no mercado ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros.
A presunção descrita no item “e” não se aplica às operações de instituições financeiras, companhias de seguro e capitalização e outras pessoas jurídicas, cujo objeto sejam atividades que compreendam operações de mútuo, adiantamento ou concessão de crédito, desde que realizadas nas condições que prevaleçam no mercado, ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros.
Conforme verificado na legislação exposta acima, a presunção de lucros distribuídos disfarçadamente está relacionada sempre a pessoas ligadas à sociedade, sendo que
a própria legislação estabelece quem são estas pessoas: Regulamento do Imposto de Renda/2018, artigo 529
a) o sócio ou o acionista da pessoa jurídica, mesmo quando for outra pessoa jurídica;
b) o administrador ou o titular da pessoa jurídica; e
c) o cônjuge e os parentes até o terceiro grau, inclusive os afins, do sócio pessoa física de que trata a letra “a”, e das demais pessoas a que se refere a letra “b”.
III- Da correta formalização documental
É necessário formalizar a transação ou transações efetuadas entre a pessoa jurídica e as pessoas ligadas acima definidas através de Instrumento contratual formalmente escrito, cuja função é caracterizar e justificar a transação, para a contabilização dos fatos e para a produção de prova em eventuais demandas fiscais e jurídicas.
O atual Código Civil (Artigo 586) denomina essa operação de contrato de mútuo. Assim, perante a legislação civilista, mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis (dinheiro, por exemplo), no qual o mutuário obriga-se a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.
Instrumento importante nesta transação, o contrato de mútuo se faz necessário para a contabilização dos fatos e para a produção de prova em eventuais demandas fiscais e jurídicas. A legislação prevê que do contrato de mútuo a ser firmado devem constar, no mínimo, as seguintes cláusulas:
a. valor da dívida;
Deve constar o montante tomado por empréstimo, se em mais de uma vez, o seu total na data em que o contrato será firmado;
b. descrição completa das partes;
As partes devem ser qualificadas no contrato, sendo Mutuante a figura do emprestador e Mutuário, a pessoa ou pessoas que tomaram o empréstimo;
c. o prazo e forma de pagamento;
No caso, se existirem, no Passivo da sociedade Mutuante, operações bancárias supridoras de capital de giro, o prazo do “Contrato de Mútuo” não poderá ser superior ao prazo médio dos contratos de financiamento correspondentes. A forma de pagamento deverá ser definida em parcelas e seus respectivos vencimentos, ou em uma só vez no vencimento final. Caso não conste prazo ou vencimento do contrato, a legislação entenderá automaticamente que o vencimento dar-se-á em 30 dias da data do contrato;
d. a remuneração do capital (juros);
A remuneração (juros) do capital tomado emprestado não poderá ser inferior ao custo médio dos financiamentos de capital de giro tomados pela pessoa jurídica. Caso não exista nenhum contrato de financiamento na sociedade no momento do mútuo, a remuneração do contrato deverá ser igual ou superior a taxa SELIC, ou sua equivalente;
e. outras cláusulas que determinem a vontade das partes, tal como a destinação do recurso, se for o caso;
f. assinatura e registro do contrato em cartório.
O Contrato deverá ser assinado pelas partes (Mutuante e Mutuário) adicionado de duas testemunhas instrumentárias. A Receita Federal do Brasil, tem exigido que o instrumento contratual seja registrado no “Cartório de Registro Especial”;
É importante notar que a formalização contratual de “per sí” não vai elidir a possibilidade da tipificação, pelo fisco, de distribuição disfarçada de lucros sem que se encontrem atendidas todas as demais exigências que a legislação já antes enunciada determina.
Em nosso próximo post trataremos da incidência tributária e das multas isoladas atribuíveis pelo fisco federal às operações. Até lá, em havendo alguma dúvida ou querendo entender melhor sobre algum caso concreto relacionado aos temas aqui tratados, entre em contato com o escritório e estaremos a sua disposição.
Luigi Comunello
luigi@advocaciacr.com.br
Contador e Administrador de Empresas formado pela UFRGS e Advogado formado pela Ulbra, com cursos de extensão em: a) Direito Comparado Brasil/Itália (PUC/RS); b) Direito Tributário (PUC/RS-IET).
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