mesmo nos casos de ausência de dolo pela inadimplência (intenção objetiva de inadimplir, mesmo tendo condições de agir diferente)

Como amplamente divulgado pela imprensa antes ainda do início da pandemia de Covid-19, os órgãos arrecadatórios dos entes públicos, mais uma vez estão em franca campanha de lobby para, junto ao Poder Legislativo, colocar em marcha tentativa já conhecida e, por tantas vezes rechaçada pelos parlamentares e declarada inconstitucional pela Suprema Corte Nacional, de penalizar criminalmente empresários pela inadimplência tributária das pessoas jurídicas por eles administradas ou das quais compõem o quadro societário.
Desta feita, foi decisão do Poder Judiciário de Santa Catarina a bloquear a intenção do Fisco catarinense de responsabilizar pessoal e criminalmente empresários por tributos inadimplidos pelas empresas.
O assunto no meio acadêmico e empresarial ligados ao Direito e às Finanças não é novo. As Fazendas Estaduais e Municipais têm se mostrado incansáveis no seu intento de utilizar-se do Direito Penal para penalizar aqueles que, às vezes aos trancos e barrancos, sobrevivendo à crise atrás de crise, teimam em gerar empregos, liderar equipes e logísticas a produzir riqueza e prestar serviços quando as empresas não vão bem e não conseguem honrar com seus compromissos.
De início reforçamos que a criminalização do empresário pela inadimplência tributária abordada no presente artigo, não é aquela com enquadramento legal no crime de apropriação indébita tributária (art. 2º, II, da lei 8.137/90), que consiste em deixar de recolher, de forma contumaz e com dolo (intenção deliberada de lesar o fisco, com animus de apropriação), o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço. A reflexão se assentará sobre os motivos pelos quais parece-nos evidente que a sociedade como um todo não interessa punir criminalmente a um empresário se sua empresa não consegue adimplir seus tributos, tendo tal situação, tantos e devastadores desdobramentos danosos ao futuro da empresa e também de seus proprietários e colaboradores.
Também, preliminarmente, faz-se fundamental afirmar que não se ignora que, nos últimos anos, mais evidente mostrou-se a necessidade da presença do Estado em certas áreas como a saúde e a regulação da vida em sociedade, estando à frente da sociedade através de seus representantes eleitos para tanto, regulando, inclusive, o direito de ir e vir e promovendo a compra e distribuição em massa de vacinas através do sistema único de saúde. Tal presença do Estado é, sabidamente, sustentada pelos tributos recolhidos por pessoas físicas e jurídicas, porém, esconder-se atrás de tais argumentos para justificar a criminalização do empresário pela inadimplência da empresa é um equívoco grave já constatado pela experiência internacional onde se mostrou evidente, em todos os países do mundo, que para que a arrecadação seja assegurada e incrementada a estratégia de penalização dos empresários não é eficiente, sob pena de desestimularmos o investimento em iniciativas empreendedoras, empresariais e inovadoras que tanto são necessárias para que nossa sociedade siga seu rumo de evolução e desenvolvimento. Um cidadão que já teve seu nome negativado no SPC tem uma pálida ideia do que acontece a uma empresa quando esta entra no CADIn (Cadastro de Inadimplência) e esse é só o começo dos graves prejuízos e consequências advindos da inadimplência tributária de uma empresa.
Consideremos que as empresas em suas mais variadas formas de associações ou organizações administrativas são eminentemente necessárias para a sociedade, não só como fontes de custeio do Estado e, portanto, da concretização das políticas públicas escolhidas pela população como norteadoras do tipo de desenvolvimento escolhido democraticamente nas eleições mas também como instrumentos de realização profissional de cada cidadão que através delas ganha o seu sustento e de sua família. Assim, desestimular àqueles cidadãos que empreendem é um desserviço a toda a sociedade a medida que estimular-se-á, com certeza, à contrario sensu, as aplicações financeiras estéreis que só remuneram ao que já detém e ao Fisco, que seguirá tributando a aplicação financeira em detrimento da atividade econômica viva e geradora de empregos e inclusão social, sem beneficiar também todos os trabalhadores, fornecedores e consumidores que interagiriam com a empresa que poderia ter sido criada com o investimento.
A ficção criada pelo direito e “batizada” com o nome de “pessoa jurídica” é, na verdade, o reconhecimento de uma entidade supra individual que, a partir de sua idealização, investimento, formação e agregação de uma ou mais pessoas em torno de si, direta ou indiretamente, e de seu objeto social (consubstanciado nos Atos Constitutivos da empresa), passa a existir no mundo civil e econômico independentemente das pessoas físicas de seus sócios, tendo inúmeras obrigações e direitos completamente diversos dos empresários que estão a sua “testa”, propriedade e gestão. E por que é assim? Porque entenderam todos os países do mundo que as empresas são promotoras de desenvolvimento e uma das melhores formas de assegurar a proteção do ordenamento jurídico tanto a quem intenta arriscar-se em sua formação quanto àqueles que se dispõe a trabalhar, interagir, contratar, consumir e fornecer bens e serviços a essa “entidade”.
A carga tributária das empresas no Brasil gira em torno, atualmente, 34% o que supera em muito a média da carga tributária dos membros da OCDE. A este cenário de carga tributária pesada, não menos importante para explicar a dificuldade de se criar e o custo de se manter uma empresa no país, o que reduz não só a atividade empresarial e a inovação mas também os investimentos – internos e externos – em novas empresas e, portanto, em novas iniciativas é a complexidade e profusão de regras tributárias e de praticamente infindáveis obrigações acessórias sempre criadas para dificultar a vida das empresas criando dificuldades não raramente para alguém “vender facilidades”, num círculo vicioso que só premia a ineficiência parasita de burocratas improdutivos que nada arriscam senão pendurarem seus paletós em cadeiras diferentes à medida que mudam suas salas e cargos dentro de repartições inócuas e mal geridas, eternamente sustentadas pelos cidadãos e pelas empresas desse país.
Os processos produtivos da maioria das empresas são complexos, formados por várias etapas e, ao contrário do que acontece na maioria dos países desenvolvidos, a tributação, no Brasil, não respeita totalmente ao princípio da não-cumulatividade. Em função desta cumulatividade tributária, as pessoas jurídicas não conseguem compensar parte de tributos – ou, por vezes, sua totalidade - paga em etapas anteriores do processo produtivo. Essa dinâmica de incidência tributária cumulativa torna os produtos fabricados no Brasil mais caros. Na maioria dos países, os seis tributos que, no Brasil, incidem sobre a circulação de serviços e bens – PIS, COFINS, ICMS, IPI, Cide-Combustíveis e ISS – são substituídos por apenas um, o IVA (Imposto sobre o Valor Agregado): imposto que incide unicamente o sobre valor agregado em cada fase/etapa da cadeia produtiva. Importante notar que o último grande país que ainda tinha um IVA fora do padrão global era a Índia, mas até mesmo o país asiático tido pelo grande público leigo como “paraíso do telemarketing” já promoveu uma reforma tributária mudando essa configuração simplificando o sistema e possibilitando que a tributação não seja cumulativa para não onerar ainda mais o sistema produtivo.
“Um sistema tributário sem cumulatividade, com baixa burocracia e com baixa distorção nos preços relativos (os preços de um bem na comparação com os demais) é essencial para a competitividade das empresas de um país”, diz o boletim Competitividade em Foco publicado pelo Banco Mundial. “No Brasil, o sistema tributário reduz a competitividade, é complexo, o que o torna oneroso para as empresas, distorce os preços relativos e, consequentemente, a alocação de recursos em detrimento das atividades com maior agregação de valores”, ressalta o Relatório do Boletim Competitividade em Foco[1].
Nesse cenário já inóspito e ineficiente para as empresas, pretender-se ainda penalizar criminalmente – como se nossos presídios tivessem condições, aliás, de abrigarem todos os já condenados por crimes afeitos às sanções penais – os empresários pelos casos onde há a inadimplência tributária (e nesse artigo não falamos sobre situações de fraude ou onde o empresário tem intenção de apropriação indébita dos valores relativos aos tributos mas da simples inadimplência por impossibilidade financeira da pessoa jurídica naquele momento) é contrário ao interesse nacional e também ao interesse de cada cidadão do país uma vez que a liberdade econômica e de associação são alicerces do próprio Estado Democrático de Direito, nos dizeres de nossa constituição, em seu art. 170 que assegura que:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Importante destacar, por fim, que a Convenção Internacional Interamericana de Direito Humanos, do qual o Brasil é signatário (e, portanto está obrigado a seguir) estipula a proibição da prisão por dívidas e não há como negar que a obrigação tributária é, em gênese, obrigação pecuniária o que, salvo melhor juízo, constitui limitação de Direito Público Internacional até mesmo a alteração através de legislação ordinária local nacional que passe a punir criminalmente empresários ou gestores/administradores pela inadimplência tributária de pessoas jurídicas, devendo reservar-se ao âmbito financeiro, econômico e administrativo as consequências cabíveis sob pena de vir a sociedade “jogar contra o próprio time” justamente em momento onde precisamos, cada vez mais, de desenvolvimento econômico e social do país.
[1] https://www.portaldaindustria.com.br/estatisticas/competitividade-brasil-comparacao-com-paises-selecionados/
RENATA COMUNELLO renata@advocaciacr.com.br
Advogada formada pela PUCRS, com pós-graduação em Direito Público e Tributário pela mesma Universidade, com curso de extensão internacional em Direito Tributário Comparado Brasil - Itália e o Princípio da Boa Fé na fase Pré-Contratual Alemanha - Brasil.
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