
No filme Muito Além do Jardim, Peter Sellers interpreta um jardineiro que viveu toda a existência ao lado de seu jardim, controlada por um severo e despótico senhorio. Falecido este, o inconsolável jardineiro não tem para onde ir, desalojado de seu espaço naquela propriedade que fora o refúgio de uma vida pacata e sombria.
Sem alternativa, aventura-se no mundo real que desconhecia e, por obra do acaso, trava contato com instâncias do poder político e econômico da maior potência do planeta. Suas considerações simplórias, todas vinculados às estações do ano e aos efeitos destas nas plantas e flores que cultivava em seu espaço de mundo, são tomadas pelos poderosos como profundas metáforas sobre os destinos do sistema político e econômico da sociedade americana. A exegese fazia-se não pelo que era formulado, mas por expressão reversa da própria expectativa do ouvinte. Assim, nosso indigitado jardineiro foi alçado à condição de sábio e conselheiro, não pelo que dizia, mas por dar ao intérprete a possibilidade de retirar das afirmações o sentido que mais se aproximava de seus interesses.
Esta paradoxal situação ilustra como o espaço de construção linguística pode conduzir o processo da interpretação, desligando-a tanto de sua origem, quanto de seu destino.
Ora, nossa Carta de 1988 bem ou mal instituiu o Estado Democrático de Direito como paradigma de realização do bem comum, ultrapassou a uma só vez o Estado Liberal de supremacia eminentemente legislativa e o Estado Social tipicamente estruturado sob a força do Executivo. Neste novo sentido que se dá às relações, a busca da igualdade e justiça vai permear um espaço cada vez mais jurisdicionado, mais ligado à interpretação da norma do que a seu texto. Há, pois, ou deveria haver, como resume Lenio Streck, um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional. Assim, inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário e, o processo judicial que se instaura torna-se um instrumento da cidadania. Exemplo claro disto é a decisão tomada em 27 de março pelo Tribunal Superior Eleitoral, definindo por seis votos a um que “os partidos políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda”. Tal decisão supre lacuna legal na esteira da inapetência do Parlamento e do descaso do Executivo em levar a efeito a tão decantada Reforma Eleitoral.
Em termos institucionais, porém à instância de realmente assumir o Poder que se lhe atribui, o Judiciário responde com uma crise estrutural de matiz profundo cujo desfecho é desconhecido. Na esteira do vazio que se forma pela impossibilidade concreta deste exercício, abre-se espaço para uma hermenêutica do direito tanto inconsequente quanto equivocada, fazendo com que da anacrônica discussão entre a “intenção do legislador” ou a “vontade da lei” acabe por surgir interpretação afastada tanto de uma quanto de outra.
O que assistimos com preocupação é à crescente crise de identidade produzida no seio da estrutura burocrática em que se constitui hoje o Judiciário brasileiro, paralisado entre o habitus de guardião legal do Executivo/governo e o desafio de transformar-se em garantidor autônomo das aspirações da sociedade. Este ensimesmado imaginário reflete-se na demolidora autocrítica que o desembargador José Renato Nalini, do Tribunal de Justiça de São Paulo, enfatizou em entrevista a Lilian Matsuura: “Há um sistema perverso, que replica a ideia de que o Judiciário existe para atender o juiz. Deixamos de lado a capacidade de trabalho, ética, vocação, talento, humildade, sensibilidade, humanismo, generosidade, bondade e compaixão. Verificamos apenas se a pessoa decorou tudo”.
Luigi Comunello
luigi@advocaciacr.com.br
Contador e Administrador de Empresas formado pela UFRGS e Advogado formado pela Ulbra, com cursos de extensão em: a) Direito Comparado Brasil/Itália (PUC/RS); b) Direito Tributário (PUC/RS-IET).
* Publicado originalmente em Revista Causa, editoria Opinião em maio de 2007.
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