
Como na mais célebre das fábulas de La Fontaine, a cigarra mais uma vez passa a perna na formiga. Aqui, diga-se, baixo um manto de questionável legalidade, emprestada à cigarra pelo próprio representante e defensor constitucional das formigas - o governo.
Querendo estabelecer regras para a desindexação da economia e dar outras providências, foi editada em 1991 a Lei n° 8.177/91, que entre outras medidas criou a Taxa Referencial de Juros, popularmente conhecida por TR. Determina este diploma legal que o Banco Central do Brasil divulgará Taxa Referencial (TR), calculada partir da remuneração mensal média - líquida de impostos - dos depósitos a prazo fixo captados pelos bancos comerciais, de investimento e etc... Dentre as instituições financeiras tomadas como referência, estariam necessariamente as dez maiores do País, elencadas pelo volume de depósitos a prazo fixo. A metodologia e as normas a respeito deveriam ser estabelecidas ou aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional.
Portanto, em obediência ao dispositivo, a TR começou a ser calculada pelo Banco Central, tendo por base a remuneração de depósitos a prazo fixo (CDBs) dos 20 maiores bancos no País, taxa esta abatida por um redutor - parcela equivalente ao valor destinado a suportar o Imposto Sobre a Renda - para então se obter a remuneração líquida de impostos, estabelecida pelo art.1° da já referida Lei. A partir disto, passou a TR a refletir medida de flutuação do custo primário, na captação de recursos a prazo fixo pelos bancos, como bem definiu a Ementa do Supremo Tribunal Federal, em resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN n°493/DF - que assim afirma: “A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda”.
Ocorre que, ao longo do tempo e em especial na última década, o Conselho Monetário Nacional, mercê da edição de inúmeras resoluções, foi transformando gradativamente o cálculo previsto no texto legal, ampliando muito além dos descontos inerentes aos impostos, o redutor da TR (Resoluções 2.387/97, 2.437/97 e 2.809/00), fazendo com que, além de ilegal, esta taxa, da forma como calculada, acabasse por se desfigurar, desvincular-se dos propósitos do legislador - calcular uma taxa referencial de juros - e assumir uma forma híbrida que não reflete nem os juros remuneratórios do uso do capital, nem a depreciação do poder aquisitivo da moeda. Assim fez o Conselho Monetário Nacional, assim afastou-se da mens legislatoris e assim vestiu de ilusória legalidade a pratice da norma, maculando-a integralmente, pelo fórceps emanado de suas Resoluções.
1° semestre de 2006
Variação percentual da TR - 0,9842%
Variação do Índice Geral de Preços - 1,28%
Variação da Caderneta de Poupança - 4,05%
Variação dos CDBs pré-fixados - 7,50%
Variação do over night (Selic) - 7,70%
Para observar a materialização do fenômeno produzido por tão bizarra articulação do CMN, é bastante comparar os diversos índices no primeiro semestre de 2006, fornecidos por fonte insuspeita - Fundação Getúlio Vargas na revista Conjuntura Econômica - que claramente nos demonstra:
“Interpretando tais percentuais, verifica-se que enquanto governo e bancos pagam aos seus investidores ao redor de 7,50% no semestre, no mesmo período, depositantes de cadernetas de poupanças recebem 4,05%, ou seja, apenas 54% da antes referida remuneração, pasmem, a variação da TR é menor do que a variação da flutuação dos preços, a indicar neste caso uma taxa referencial de juros negativa, pois não reflete sequer a perda do valor aquisitivo da moeda.”
Dizem os mais apressados estar esta engendrada artimanha a serviço do barateamento do custo dos financiamentos habitacionais, nos quais a TR é indexador, realizando a máxima Stalinista “a cada um de acordo com suas necessidades, de cada um de acordo com suas possibilidades”. Assim, aqueles que têm, transferem via diferencial de cálculo para aqueles que não têm. Embora questionável sob o aspecto da ortodoxia jurídica, seria talvez esta prática legitimada pelo conteúdo ético-social de que estaria revestida. A legitimidade sobrepondo-se à legalidade estrita.
Porém, como nada é o que parece, também aqui nesta afirmação se encontra a oceânica distância da realidade. Utilizemos desta feita as informações gestadas no ventre do próprio monstro - Banco Central do Brasil, Direcionamento de Recursos, Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos, Consolidado das instituições - no mesmo período antes examinado - 1° semestre de 2006 - para verificar que:
Os financiamentos habitacionais, em junho de 2006, com recursos da poupança totalizavam R$ 41 bilhões, adicionados de mais R$ 15 bilhões financiados a taxas de juros de mercado (?), enquanto a conta de recursos de poupança totalizava na mesma data R$ 133 bilhões. Pergunta-se: esta diferença de aproximadamente R$ 90 bilhões, onde está aplicada e, principalmente a que taxas de juros está aplicada? Ainda: quem ganha com isto? Pois quem perde já sabemos... Somente entre as taxas de captação de recursos pagas pelos bancos e pelo governo aos seus investidores e as pagas aos depositantes de caderneta de poupança, já existe uma diferença de R$ 3,5 bilhões ao semestre, ou seja R$ 7 bilhões ao ano. Observe-se que este valor se aproxima do montante aplicado pelo governo na tão decantada “bolsa-família”. Assim, impõe-se que mais uma pergunta deva ser respondida: A que cigarra, mercê de manobras solertes e fórmulas incompreensíveis ao leigo, o Conselho Monetário Nacional entrega - cálculo “por baixo” - no mínimo R$ 7 bilhões ao ano? E por que venerandas instituições sociais e os poderes constituídos a tudo silenciam?
Luigi Comunello
luigi@advocaciacr.com.br
Contador e Administrador de Empresas formado pela UFRGS e Advogado formado pela Ulbra, com cursos de extensão em: a) Direito Comparado Brasil/Itália (PUC/RS); b) Direito Tributário (PUC/RS-IET).
* Publicado originalmente em Revista Causa, editoria Opinião em fevereiro de 2007.
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